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CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO: COM A PALAVRA A DOUTORA FERNANDA OLIVEIRA GOMES

            Foto: Dra Fernanda O. Gomes/Divulgação


O Dia de Conscientização e Combate ao Câncer de Cabeça e Pescoço é lembrado em todo o mundo, dentro da campanha 'Julho Verde'. De acordo com o Ministério da Saúde, o câncer de laringe é o mais comum dentre os tumores malignos de cabeça e pescoço, também comum na tireoide e cavidade oral.

Com a palavra: Doutora Fernanda Oliveira Gomes - Fonoaudióloga pela UNESP, especialista em Voz e Mestre em C. Médicas pela USP.


Incidência e fatores

Conectadosbr: Quais os tipos mais comuns de câncer de cabeça e pescoço?
Dra. Fernanda: Os tipos mais comuns são os carcinomas espinocelulares (CEC), que afetam a boca, faringe, laringe e seios paranasais (na face, onde dói quando temos sinusite), mais frequentes em homens com mais de 50 anos. Também são frequentes os cânceres de glândulas salivares e de tireoide, o último mais frequentes em mulheres jovens.

Conectadosbr: Quais são os principais fatores de risco associados a esses cânceres? (Tabagismo, álcool, HPV)
Dra. Fernanda: O principal fator de risco para a maioria dos tumores de cabeça e pescoço é o hábito de fumar, qualquer tipo de cigarro. O consumo de álcool potencializa os danos do cigarro. Além disso, a infecção pelo papilomavírus humano (HPV), especialmente o tipo 16, está fortemente associada ao câncer de orofaringe. Outros fatores incluem má higiene bucal, exposição a agentes químicos no trabalho e predisposição genética. 

Conectadosbr: Qual a incidência atual desses cânceres no Brasil e no mundo?
Dra. Fernanda: Segundo o INCA, em 2023, o Brasil registrou estimativa de cerca de 15 mil novos casos de câncer de boca e 6 mil de laringe. Mundialmente, os cânceres de cabeça e pescoço representam cerca de 4% de todos os cânceres, com mais de 700 mil novos casos por ano, sendo mais prevalentes em homens e em países com menor desenvolvimento socioeconômico.


Diagnóstico

Conectadosbr: Quais são os sinais e sintomas iniciais que podem identificar um câncer de cabeça e pescoço?
Dra. Fernanda: Os sintomas variam conforme o local, podendo ser: 
- ferida na boca que não cicatriza em até 15 dias, mesmo sem dor
- dor ou dificuldade para engolir
- rouquidão persistente por mais de 15 dias
- "caroço" no pescoço
- dor de ouvido unilateral
- sangramentos incomuns pela boca
Muitos são acompanhados de perda de peso inexplicada. 

Conectadosbr: Qual a importância do diagnóstico precoce para o sucesso do tratamento e como é feito esse diagnóstico?
Dra. Fernanda: O diagnóstico precoce aumenta significativamente as chances de cura e preservação funcional. É feito por meio de avaliação clínica, exames de imagem dependendo do local (tomografia, ressonância, laringoscopia, ultrassonografia, entre outros) e biópsia do tumor. Em alguns casos, a detecção do DNA do HPV também é feita para definir o subtipo tumoral. Quanto mais cedo for detectado, maiores chances de cura completa. Quanto mais tarde o tratamento iniciar, haverá menos opções disponíveis de tratamento e maior risco de metástases. 


Tratamento

Conectadosbr: Quais são as opções de tratamento disponíveis para esses tipos de cânceres?
Dra. Fernanda: As opções de tratamento relacionado ao câncer incluem: cirurgia, radioterapia, quimioterapia, imunoterapia e, em alguns casos, terapia-alvo. O tratamento pode ser isolado ou combinado, dependendo do estágio e do tipo do tumor. O oncologista e o cirurgião de cabeça e pescoço são os responsáveis por esta parte do tratamento. 

Conectadosbr: Como o profissional define o tratamento mais adequado para cada paciente?
Dra. Fernanda: A definição considera o estágio do tumor (TNM), localização, tipo histológico, presença de metástases, condição clínica e idade do paciente, presença de HPV e objetivos do tratamento (cura, controle ou paliativo). A decisão é geralmente feita por uma equipe multidisciplinar, o paciente e a família.

Conectadosbr: Qual o papel da cirurgia, radioterapia, quimioterapia e imunoterapia no tratamento?
Dra. Fernanda: *Cirurgia: visa remover o tumor e, quando necessário, gânglios cervicais.
*Radioterapia: usada como tratamento principal ou adjuvante, especialmente em tumores sensíveis à radiação. Nos casos de tumores de tireóide pode ser indicada a radioiodoterapia.
* Quimioterapia: pode ser neoadjuvante, concomitante à radioterapia ou paliativa. Não é indicada quimioterapia sozinha nestes casos.
* Imunoterapia: usada em casos avançados ou refratários, com medicamentos.

Conectadosbr: Como o tratamento varia entre tumores iniciais e mais avançados?
Dra. Fernanda: Os tumores iniciais geralmente são tratados com cirurgia ou radioterapia isolada, com bom prognóstico. Já os tumores avançados exigem tratamento combinado (cirurgia + radio/quimio), com maior risco de sequelas funcionais e complicações.

Conectadosbr: Quais os principais efeitos colaterais dos tratamentos e como são manejados?
Dra. Fernanda: Na Radioterapia os efeitos mais comuns são:mucosite(inflamação da mucosa da boca), xerostomia (boca muito seca), disfagia (dificuldade para engolir) e osteorradionecrose (necrose de parte do osso). Na Cirurgia, depende do tamanho da área retirada, sendo os efeitos mais comuns as alterações na respiração, fala, deglutição e estética facial. Durante a Quimioterapia os efeitos mais frequentes são náuseas, queda de cabelo e imunossupressão. Devido a estes variados e complexos efeitos, a reabilitação multiprofissional é essencial para o manejo.

Conectadosbr: Como o tratamento pode afetar funções importantes, como fala e deglutição?
Dra. Fernanda: As cirurgias podem comprometer estruturas da fala e causar problemas para alimentar-se, como por exemplo nos casos das glossectomias (cirurgias para retirada da língua). As laringectomias são cirurgias para retirada da laringe, onde ficam as pregas vocais. Após este procedimento o paciente pode perder totalmente a voz e até precisar de uma traqueostomia. Algumas cirurgias podem causar danos aos nervos, como nos tumores de glândulas salivares, a cirurgia pode levar à paralisia facial ou na tireoidectomia, que pode levar à paralisia da prega vocal. Alguns pacientes alimentam-se por sondas após a cirurgia e precisam de terapia para adaptar a deglutição (ato de engolir).  A reabilitação com fonoaudiólogo é fundamental para recuperar ou adaptar essas funções.

Conectadosbr: Há avanços recentes em técnicas cirúrgicas, como cirurgia robótica ou endoscópica, que beneficiam os pacientes?
Dra. Fernanda: Sim. A cirurgia robótica transoral (TORS) e técnicas endoscópicas minimamente invasivas permitem acesso mais preciso a áreas difíceis, com menor trauma, menos sequelas funcionais e recuperação mais rápida. Disponíveis em grandes centros de referência.


Prognóstico e cura

Conectadosbr: Qual o potencial de cura para pacientes em diferentes estágios do câncer de cabeça e pescoço?
Dra. Fernanda: Nos estágios iniciais, a taxa de cura pode chegar a 80-90%, especialmente em tumores relacionados ao HPV. Em estágios avançados, a taxa cai para 30-50%, dependendo da extensão e resposta ao tratamento.   Um estudo publicado no JAMA Otolaryngology – Head & Neck Surgery (2020) demonstrou que iniciar o tratamento em até 30 dias após o diagnóstico está associado a taxas de sobrevida em 5 anos entre 70% e 85% para tumores em estágios iniciais. Quando o tratamento é iniciado entre 31 e 60 dias, a sobrevida estimada cai para 60% a 70%. Já atrasos superiores a 60 dias podem reduzir a sobrevida para menos de 50%, chegando a 30% em casos avançados. Esses dados reforçam a importância da Lei dos 60 dias (Lei nº 12.732/2012), que garante ao paciente oncológico o direito de iniciar o tratamento no SUS em até dois meses após o diagnóstico. A rapidez na intervenção é fundamental para aumentar as chances de cura, controlar a progressão da doença e preservar a qualidade de vida dos pacientes.  

Conectadosbr: Como o HPV influencia o prognóstico dos tumores de orofaringe?
Dra. Fernanda: Tumores de orofaringe relacionados ao HPV têm melhor resposta ao tratamento e maior sobrevida, mesmo em casos localmente avançados. Pacientes jovens, não tabagistas e com infecção por HPV 16 tendem a ter melhor prognóstico.

Conectadosbr: Quais são as taxas de sobrevivência para esses cânceres?
Dra. Fernanda: A taxa de sobrevivência global em 5 anos varia conforme o local:
* Laringe: cerca de 60-70%
* Cavidade oral: 50-60%
* Orofaringe (HPV positivo): até 80-90%
* Nasofaringe e hipofaringe: 35-50%
* Tireoide depende do tipo, variando de 10 a 100%
* glândulas salivares: até 80-90%


Sobre a qualidade de vida e suporte

Conectadosbr: Qual o impacto na qualidade de vida do paciente durante e após o tratamento?
Dra. Fernanda: O impacto pode ser significativo. Os pacientes enfrentam dificuldades na alimentação, fala, autoestima, dor crônica, fadiga, alterações na imagem corporal e isolamento social. Muitos não conseguem retomar suas atividades de trabalho e às vezes até de lazer. Por isso, o suporte multidisciplinar  é essencial para a reabilitação e reinserção social.

Conectadosbr: Que tipo de reabilitação é necessária (fonoaudióloga, nutricional…)?
Dra. Fernanda: Uma equipe multidisciplinar é muito importante nestes tratamentos. Os fonoaudiólogos reabilitam a fala, voz, linguagem, mímica facial, mastigação e deglutição, adaptando da melhor forma estas funções, assim como atuam na parte estética da face e voz quando possível. Os psicólogos auxiliam o paciente e sua família ao longo do processo para promover a saúde mental e fortalecer recursos de enfrentamento. Os nutricionistas adequam as refeições de acordo com as necessidades nutricionais em cada fase do tratamento, de acordo com a forma de alimentação mais segura. Os fisioterapeutas reabilitam as funções respiratórias e de movimento de membros superiores e face. Os assistentes sociais atuam na garantia de direitos, no acesso aos recursos sociais e no apoio às questões sociais que surgem ao longo do tratamento. O trabalho do enfermeiro visa executar e orientar cuidados com feridas cirúrgicas, traqueostomias, sondas de alimentação (nasogástrica ou gastrostomia) e outras intervenções invasivas, garantindo higiene adequada, prevenção de infecções e conforto. O odontólogo atua com a saúde bucal, tratamento das sequelas orais e na produção de próteses para reabilitação. O trabalho do terapeuta ocupacional visa favorecer o resgate da identidade e da autoestima, incentivando a retomada de atividades que tragam bem-estar e sentido à vida do paciente e realizando adaptações físicas para isso. Todos juntos trabalham pela melhora qualidade de vida do paciente, sua melhor reabilitação e maior autonomia.

Conectadosbr: Existe um grupo de apoio ou serviço multidisciplinar disponível para os pacientes?
Dra. Fernanda: A maioria dos centros oncológicos de referência e hospitais públicos e privados que tratam câncer de cabeça e pescoço no Brasil oferece serviços multidisciplinares e, em alguns casos, grupos de apoio específicos para esses pacientes. Instituições como o INCAAC Camargo Cancer CenterHospital de Amor (Barretos) e diversos hospitais universitários oferecem esse tipo de serviço, geralmente gratuito, por meio de programas de humanização e acolhimento ao paciente oncológico. Quando a doença está muito avançada e é identificado que os tratamentos já não são capazes de oferecer cura ao paciente, também há equipes e grupos de apoio em Cuidados Paliativos.  


Sobre a Doutora Fernanda:


Conectadosbr:  Como foi sua escolha em relação a Fonoaudiologia?
Dra. Fernanda: Sempre gostei da área da saúde e um amigo me sugeriu o curso, porque a irmã dele fazia. Fui ler a respeito e me identifiquei com a proposta de promover melhor comunicação e qualidade de vida às pessoas.

Conectadosbr: Principais desafios durante a faculdade?
Dra. Fernanda: Hoje é tudo muito diferente, mas na época o acesso à informação era difícil. Meu curso foi integral e tinha muitas atividades. Em paralelo eu ministrava aulas à noite, para ajudar a pagar minha moradia. Tive que mudar de cidade e deixar minha família para fazer um curso superior numa boa universidade. Exigiu comprometimento e resiliência.

Conectadosbr: Suas especificações impactaram significativamente no desempenho de seus atendimentos?
Dra. Fernanda: Sim, tive uma excelente formação generalista, que me permitiu escolher o que eu quisesse. Recebi uma grande "bagagem", para poder ter diferentes visões independente da área que escolhesse. Mas após formada eu já sabia que gostaria de atuar com Voz, então busquei o Aprimoramento, depois a Especialização e então o Mestrado. Foram essenciais para fundamentar meu trabalho. 

Conectadosbr: Quais os maiores desafios clínicos que você já enfrentou?
Dra. Fernanda: Uau, foram tantos casos ao o logo destes anos que é difícil escolher. Trabalhando no SUS há 19 anos, coleciono muitas histórias. Enfrento diariamente o desafio de propor tratamento à pessoas em famílias disfuncionais e, muitas vezes, em condições psicossociais precárias. Isso tudo torna qualquer tratamento mais complexo, podendo até levar ao insucesso terapêutico. Na parte física, destes casos de câncer de cabeça e pescoço, já tive muitos casos complicados. Paciente com a língua toda removida devido câncer e falava poucas palavras em Português, pois se comunicava com a família em japonês a vida toda. Um senhor que teve um AVE durante o procedimento cirúrgico de remoção da laringe e só foi descoberto depois. Um senhor radialista que negou seu tratamento por medo de perder a voz e depois voltou já em metástase, com um tumor que precisou de uma glossopelvefaringolaringectomia. Um paciente em cuidado paliativo que queria se casar antes de falecer para garantir direitos à ex-esposa. Um jovem com um tumor gigante do nariz, que teve que retirar parte da face. Enfim, são muitos os casos.

Conectadosbr: Muito se fala em tratamentos no exterior, como você analisa a estrutura oferecida para os pacientes nos hospitais brasileiros?
Dra. Fernanda: Vejo que grandes hospitais tem boas estruturas, mas há muitos municípios onde ainda ocorrem muitas negligências. Muitos países desenvolvidos investem muito na radioterapia, para evitar as mutilações da cirurgia. São poucos os lugares no Brasil que oferecem tratamentos muito avançados neste sentido, de preservação dos órgãos de forma eficaz (porque manter o órgão e perder sua função é pior do que perder o órgão, pois a reabilitação é muito mais difícil). Por isso nos centros onde há ensino de cirurgiões há maior excelência nos resultados cirúrgicos do que muito país por aí. Vemos pessoas vindo operar no Brasil por isso. O mesmo ocorre com as próteses de reabilitação, há poucos lugares que fazem no Brasil, mas alguns deles são de excelência. Acredito que nosso maior problema seja no acesso aos serviços mesmo. 

Conectadosbr: Deixe uma mensagem para o paciente e familiares dos pacientes que estão enfrentando o câncer de cabeça ou câncer de pescoço.
Dra. Fernanda: Bem, ao longo destes anos aprendi muito com estes pacientes e familiares. Mudei inclusive minha forma de ver a vida após estas experiências. Quero dizer às pessoas que enfrentam esta luta, que perseverem. Busquem ajuda, persistam. Alguns entram em choque quando recebem o diagnóstico e muitos precisam de suporte profissional para lidar. E tudo bem , não é fácil mesmo. Mas é possível! Vejo todos os dias que é possível ressignificar as dores, derrubar as barreiras e encontrar motivos para lutar pela melhor qualidade da vida e até da morte. Porque toda vida importa. Não desista da sua.

                                   Foto: Divulgação / Associação Câncer Boca e Garganta 





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